A Hora da Estrela

ESTRELA

A Hora da Estrela, publicado em 1977, é o último romance de Clarice Lispector. Nele, a metalinguagem, o questionamento sobre a criação literária, as indagações sobre o ato de existir – a questão filosófica da existência, sintetizada na questão “QUEM SOU?” – e a existência de um ser, absolutamente, alienado da própria vida constituem os temas centrais da narrativa.

ESTRUTURA DA OBRA

A obra se divide em três narrativas que se convergem: O DRAMA DE RODRIGO S.M. , um escritor limitado que deseja narrar a história de Macabéa; A NARRATIVA DA VIDA DE MACABÉA e A HISTÓRIA DA PRÓPRIA COMPOSIÇÃO DA NARRATIVA. É  necessário deixar claro que as histórias que compõem a obra ocorrem simultaneamente.

TEMÁTICA SOCIAL

 

    Outra  quase obsessão de suas conversas: o não saber expressar-se de um modo “literário” sobre o problema social. Coisa que, de resto, seu romance A Hora da Estrela veio desmentir. Ela própria dizia que os problemas da justiça social despertavam nela um sentimento tão essencial que não conseguia escrever sobre eles. Não havia o que dizer. Bastava fazer… (Olga Borelli)

 AS TRÊS NARRATIVAS

      Três histórias se conjugam, num regime de transação constante, em a Hora da Estrela.

 PRIMEIRA NARRATIVA

Rodrigo S.M., o narrador, é um escritor que não usufrui de prestígio ou de sucesso e deseja escrever uma história simples, com enredo linear e vocabulário claro, acessível. Na ânsia de conhecer melhor sua personagem, a alagoana Macabéa, Rodrigo S. M. procura se identificar com ela e, por isso, deixa de tomar banho e fazer a barba, quase não dorme, o que lhe confere um aspecto de cansaço; abandona qualquer atividade que lhe proporcione prazer. Acredita que agindo assim conseguirá descer até sua personagem, conseguirá atravessar o nojo do contato, para finalmente identificar e compreender a personagem e a si mesmo. Para ele, conhecer o outro é provar ainda mais da náusea, do asco que irmana todos nessa vida. Assim, o narrador informa ao leitor que escrever é sempre uma atividade dolorosa e que falar do outro é sempre uma forma de conhecer a si mesmo. No final do livro, Rodrigo S. M. sente-se culpado pela morte de Macabéa, por não conseguir modificar o destino de sua personagem. No final da história, aumenta o sentimento de impotência do escritor-narrador diante da personagem. Afinal, a morte não será apenas para Macabéa, ela será para todos.

SEGUNDA NARRATIVA

Macabéa nasceu no sertão de Alagoas e ficou órfã aos dois anos de idade, foi criada por uma tia beata que a castigava constantemente. Aos dezenove anos veio para o Rio de Janeiro e conseguiu um emprego de  datilógrafa, embora mal soubesse escrever. Divide um quarto alugado mais quatro moças e seus raros momentos de prazer resume-se a ir ao cinema uma vez por mês e a pintar as unhas de vermelho. Como passatempo, Macabéa escuta na madrugada a Rádio Relógio Federal, que dá a hora certa e informações sobre os mais diversos assuntos e costuma recortar anúncios de jornais. O anúncio de que ela mais gosta é o de creme de beleza e imagina que, se um dia pudesse compra-lo, ela não o passaria pelo corpo – iria comê-lo.

Sonha em ser uma estrela de cinema, como a atriz Marylin Monroe.  Daí o título do livro e a ironia que ele contém, pois o momento culminante da vida de Macabéa (a hora da estrela) não em nenhum glamour, pelo contrário, será o momento de uma morte sem nenhum brilho.

A vida de Macabéa é marcada pela mesmice. Um dia, entretanto, com pretexto de  uma dor de dentes, ela falta ao trabalho. Espera que as companheiras de quarto saiam e assim usufrui sozinha de um espaço só para ela.  À tarde, durante um passeio, conhece Olímpico de Jesus, que mais tarde se tornará seu primeiro namorado.

Olímpico de Jesus era um assassino, havia matado um homem no sertão da Paraíba. No Rio de Janeiro, trabalha como metalúrgico e ambiciona, a qualquer custo, subir na vida. Seu sonho era tornar-se açougueiro e eleger-se um dia a deputado.

Os encontros com Macabéa ocorrem sempre em dias de chuva e Olímpico logo se cansa dela. Quando conhece Glória, que trabalhava no mesmo escritório que Macabéa, Olímpico substitui a namorada sem atrativos pela loira oxigenada. Glória representa para ela uma forma de ascensão social. Além do mais, o pai dela era açougueiro.

A reação de Macabéa ao perder o namorado para amiga foi comprar um batom vermelho e desenhar em seus lábios os famosos contornos dos lábios da atriz Marylin Monroe. Como havia se pintado no banheiro da firma, ao retornar à sala de trabalho foi ridicularizada por Glória. Macabéa, então, limitou-se a dizer que estava com dores de cabeça. A “amiga” lhe indicou um médico e uma cartomante.

O médico repreendeu os hábitos alimentares de Macabéa: ela comia apenas cachorro-quente e sanduíches de mortadela. Já a cartomante, madame Carlota, uma ex-prostituta e cafetina, prevê um futuro feliz, ao lado de um namorado rico e estrangeiro. Ao sair da cartomante, Macabéa é atropelada por uma Mercedes Benz, cai e vomita uma “estrela de mil pontas” – A HORA DA ESTRELA.

TERCEIRA NARRATIVA

É de caráter metalinguístico, já que procura desvendar os segredos da criação literária. a começar pela dedicatória do autor (na verdade, Clarice Lispector) a autora procura apresentar para o leitor os processos de construção do texto literário. Clarice abandona sua identidade social para assumir a identidade do narrador, revelando, desse modo, os caminhos que um escritor percorre para compor uma história. Daí o fato de o narrador Rodrigo S. M. expor ao leitor, a odo instante, as agruras que enfrenta para pode construir sua narrativa. Afirma que a escolha de uma linguagem simples e de um enredo linear é a melhor solução para abordar a vida de uma moça pobre. Contudo, embora afirme logo no começo da história que dará início à narrativa da vida de Macabéa, ele faz antes uma série de observações sobre o processo de construção do texto, adiando a história da nordestina.

O resultado final é um trabalho complexo, porque as histórias se entrelaçam. O projeto de Rodrigo S. M. de escrever uma história simples não se realiza, porque como ele mesmo reconhece, no decorrer de uma narrativa a personagem adquire vida própria e o narrador não tem poder de modificar o destino dela.

OS TREZE TÍTULOS

Além do título A HORA DA ESTRELA, o livro possui mais treze títulos, intercalados pela assinatura da autora. Os títulos e a assinatura são apresentados na seguinte ordem:

A hora da estrela.

A Culpa é Minha
ou
A Hora da Estrelas
ou
Ela que se Arranje
ou
O Direito ao Grito

ou
Quanto ao Futuro.
ou
Lamento de um Blue
ou
Ela não Sabe Gritar
ou
Uma Sensação de Perda
ou
Assovio no Vento Escuro
ou
Eu não posso fazer nada
ou
Registro dos Fatos Antecedentes
ou
História Lacrimogênica de Cordel
ou
Saída Discreta pela Porta dos Fundos

       É provável que a razão de tantos títulos seja a de sugerir que a complexidade temática da obra não se esgota em um único título. A obra é muito mais do que o título pode sugerir. “A Hora da Estrela, a última hora de Clarice Lispector, é um pequeno grande livro que ama e não sabe nada, nem mesmo seu nome. Quero dizer, nem mesmo seu título. Hesita entre vários títulos. É um livro que poderia ter seu nome de acordo com a hora. Como escolher então um título? No mundo onde bem ou mal cresce essa sombra de personagem, escolher já é um privilégio. Ter o que escolher é um martírio para a criatura que jamais teve coisa alguma .” (Hélene Cixous)

 DEDICATÓRIA

O livro inicia por uma dedicatória curiosa: “Dedicatória do Autor (Na verdade Clarice Lispector)”. Os leitores sabem que Clarice Lispector é a atora da obra. Por isso, Clarice anuncia o momento de sua transformação em narrador, procurando, logo no início do romance, revelar as técnicas do processo de criação literária. Ao assumir a identidade de Rodrigo S.M., ela apresenta os conflitos do narrador no momento em que esse narra a história de Macabéa.

FOCO NARRATIVO

        “Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida.
Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o que, mas sei que o universo jamais começou.
Que ninguém se engane, só consigo a simplicidade através de muito trabalho.
Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever. Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer? Se antes da pré-história já havia os monstros apocalípticos?
Se esta história não existe, passará a existir. Pensar é um ato. Sentir ó um fato. Os dois juntos – sou eu que escrevo o que estou escrevendo. Deus é o mundo. A verdade é sempre um contato interior e inexplicável. A minha vida a mais verdadeira é irreconhecível, extremamente interior e não tem uma só palavra que a signifique. Meu coração se esvaziou de todo desejo e reduz-sé ao próprio último ou primeiro pulsar.
[…]
Porque há o direito ao grito.
Então eu grito.
Grito puro e sem pedir esmola. Sei que há moças que vendem o corpo, única posse real, em, troca de um bom jantar em vez de um sanduíche de mortadela. Mas a pessoa de quem falarei mal tem corpo para vender, ninguém a quer, ela é virgem e inócua, não faz falta a ninguém. Aliás – descubro eu agora – também eu não faço a menor falta, e até o que escrevo um outro escreveria. Um outro escritor, sim, mas teria que ser homem porque escritora mulher pode lacrimejar piegas.”

A obra começa com a percepção do narrador de que a vida é um mistério, porque não é possível saber s sua origem. Daí a necessidade que ele em de indagar, de perguntar. Afirma que irá escrever enquanto tiver perguntas por fazer e não tiver respostas, o que significa que escreverá enquanto tiver vivo, porque não é possível saber a origem da vida e, consequentemente, saber o que somos.

Escrever, para o narrador, é uma tarefa dolorosa “ A dor de dentes que perpassa esta história deu uma fisgada funda em plena boca nossa”, pois a busca do outro é também a busca de si mesmo. O narrador está consciente de que existe apenas a busca e não o encontro. É necessidade da procura do outro e de si mesmo que o impulsiona.

          Pretendo, como já insinuei, escrever de modo cada vez mais simples. Aliás, o material de que disponho é parco e singelo demais, as informações sobre os personagens são poucas e não muito elucidativas, informações essas que penosamente me vêm de mim para mim mesmo, é trabalho de carpintaria.

       Sim, mas não esquecer que para escrever não-importa-o-quê, o meu material básico é a palavra. Assim é que esta história será feita de palavras que se agrupam em frases e destas se evoca um sentido secreto que ultrapassa palavras e frases. É claro que, como todo escritor, tenho a tentação de usar termos suculentos: conheço adjetivos esplendorosos, carnudos substantivos e verbos tão esguios que atravessam agudos o ar em vias de ação, já que palavra é ação, concordais? Mas não vou enfeitar a palavra, pois se eu tocar no pão da moça esse pão se tornará em ouro – e à jovem (ela tem dezenove anos) e a jovem não poderia mordê-lo, morrendo de fome. Tenho então que falar simples para captar a sua delicada e vaga existência. Limito-me a humildemente – mas sem fazer estardalhaço de minha humildade que já não seria humildade – limito-me a contar as fracas aventuras de uma moça numa cidade toda feita contra ela. Ela, que deveria ter ficado no sertão de Alagoas com vestido de chita e sem nenhuma datilografia, já que escrevia tão mal, só tinha até o terceiro ano primário. Por ser ignorante era obrigada na datilografia a copiar lentamente letra por letra – a tia é que lhe dera um curso ralo de como bater à máquina. E a moça ganhara uma dignidade: era enfim datilógrafa. Embora, ao que parece, não aprovasse na linguagem duas consoantes juntas e copiava a letra linda e redonda do amado chefe a palavra “designar” de modo como em língua falada diria: “desiguinar”.

O recurso utilizado pela autora é o narrador-participante. Ao longo de toda a narrativa, o narrador estabelece um vínculo com o leitor, apresentando-lhe as técnicas empregadas na construção da narrativa, recurso chamado de metalinguagem. Ele noticia ao leitor que escreverá de forma simples, já que a natureza do assunto não consente sofisticação. Assim, pouco a pouco, vai surgindo a personagem com dezenove anos de idade, nascida no sertão de Alagoas.

Rodrigo S.M., o narrador, não é um autor de sucesso. Almeja escrever uma história simples e, para atingir a almejada simplicidade, ele precisa conhecer melhor a personagem de sua história – Macabéa. Como Macabéa é uma pessoa pobre e desleixada, ela aos pouco vai  descendo ao nível dela , impondo assim uma metamorfose que o exaure dos prazeres. Pretende com isso descer ao objeto de sua análise para transcender todo o asco, todo o nojo, que a convivência cria. Para ele, a vida provoca náuseas.

ESPAÇO

Apesar de o espaço externo, Rio de Janeiro, ser preterido pela autora é necessário citá-lo, a fim de que o leitor tenha essa noção de concretude, entretanto vale ressaltar que Clarice Lispector se preocupa mesmo é com o mundo interior de suas personagens, afinal, essa é uma obra introspectiva, intimista, que  o narrador busca fixar-se na crise do próprio indivíduo, em sua consciência e inconsciência.

TEMPO

      Há uma valorização do tratamento do tempo – cronológico e psicológico – por parte do autor-narrador. Rodrigo S.M., que discute a função do escritor, desmascara o processo da escrita e o tempo a ela dedicado.

       O tempo da narrativa, segundo o narrador, é atual: “Tudo isso acontece no ano este que passa e só acabarei esta história quando eu ficar exausto da luta.”

PERSONAGENS

MACABÉA: o nome lembra macabeus ( evocação da cultura hebraica), que lutaram para defender o templo do Monte Sião contra a força dos gregos. A abreviação Maca é, graficamente, quase idêntica a maçã, sem o til e a cedilha. Maca é nordestina, toda fome e deserto. Queria parecer-se com Marylin Monroe. Será “estrela” no momento de sua morte.

OLÍMPICO DE JESUS:  tem no nome a referência ao mito, mas é filho sem pai, ladrão e assassino. É apaixonado por política, arrogante e mascara sua ignorância.

 RODRIGO S.M.:  narrador-participante da obra em análise. Ele em total domínio da narrativa, inclusive da morte da protagonista. Ele é um homem de classe média que se obriga a uma conduta ética humilde para poder narrar, sem “termos suculentos” e “ carnudos substantivos”, a história de Macabéa.

 GLÓRIA: loura oxigenada, corpo sedutor, extrovertida, família organizada, desenvoltura profissional. Macabéa sentia inveja dela.

 MADAME CARLOTA:  cartomante, profissão atual, mas no passado, de acordo com a história contada por ela a Macabéa, foi prostituta quando jovem, montou uma casa de  mulheres e ganhou muito dinheiro. Ela mascara os recursos de sobrevivência como pretexto da caridade cristã. Usa muita maquiagem e tem discurso fluente.

 CONSIDERAÇOES FINAIS

Esse romance é exemplar na revelação do drama que pulsa sob o cotidiano. A trajetória de Macabéa é vulgar: imigrante pobre, desnutrida e solitária que divide um quartinho alugado, que tem um subemprego, e que finalmente morre atropelada em uma rua qualquer da cidade grande.

O que confere um caráter único surpreendente e mágico a essa situação trágica, mas prosaica, é a lente de aumento posta sobre fatos. Essa lente amplia de maneira realista e cruel o horror da indigência de Macabéa, a vileza das regras que vigoram neste mundo. Em seu torpor de miserável, a protagonista sofre pequenas epifanias as quais espocam no seu cotidiano triste e que são marcadas pelo narrador com a palavra “explosão”. Macabéa faz parte de uma multidão de pessoas que, como ela, resistem a indigência, mas sob a pena de Clarice reluz em uma particularização tão assustadora, ganha uma identidade, que a solidariedade para com ela é inevitável.

Apresenta uma literatura intimista, introspectiva, pois busca fixar-se na crise do próprio indivíduo, em sua consciência e inconsciência. Em “A Hora da Estrela”, Clarice Lispector apresenta dois eixos: o drama de Macabéa, pobre moça alagoana engolida pela cidade grande, e o drama do narrador, duelando com as palavras e os fatos. Poderíamos afirmar que se trata de uma narrativa de caráter social e, ao mesmo tempo, uma profunda angustiada reflexão sobre o ato de escrever.

REFERÊNCIAS:

Abaurre. Maria Luiza M. Literatura Brasileira. São Paulo: Moderna

BOSI,  Alfredo: História concisa da Literatura Brasileira 3ª edição São Paulo: Cultrix LTDA.

TERRA, Ernani

Gramática, literatura e produção de texto. 2º ed. – São Paulo: Scipione, 2002

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